Interessados em temas como gentrificação e mudanças urbanas e sociais em grande escala, dez estudantes alemães da Faculdade de Fotografia da Universidade de Artes em Bremen e da Faculdade de Artes e Estudos Culturais da Universidade Leuphana de Lüneburg resolveram voltar seus olhos – munidos de lentes – para o Brasil. Com enfoque específico em São Paulo e no Rio de Janeiro, os estudantes se dividiram para rodar as duas maiores cidades do país, retratando as transformações urbanas provocadas pelos preparativos para os megaeventos.
A ideia era tirar fotos das comunidades ameaçadas para depois juntá-las em um livro também com textos sobre a população brasileira e os megaeventos. “Nós conversamos com as pessoas, ouvimos suas histórias e fizemos as fotos de acordo com a forma como elas estão se sentindo”, afirma a estudante Lilly Bosse, acrescentando que “algumas fotos são mais artísticas”. O plano é realizar uma esposição no Brasil e outra na Alemanha.
O Copa Pública conversou com três estudantes do Shift – Lilly Bosse, Cordula Heins e Caroline Speisser – para saber suas impressões sobre o país pré-copa. Leia a entrevista:
Vocês estão há duas semanas e meia no Brasil. Quais são as impressões de vocês do país?
Lilly – A primeira impressão de São Paulo é a de que é uma cidade enorme! Eu nunca tinha estado em uma cidade tão grande. Tem muita gente, muitos carros, é impressionante. E as pessoas são especiais também. Nós conhecemos muitas pessoas nas comunidades, nas favelas e elas são muito generosas e hospitaleiras. Lá as pessoas sempre estavam nos convidando para ir na casa delas, e estavam sempre dispostas a conversar. Eu acho isso bem legal, é diferente do que estamos acostumados na Alemanha.
O que exatamente é o projeto Shift, do qual vocês fazem parte?
Caroline – Nós somos um grupo de cerca de dez estudantes de arte, da Universidade de Artes em Bremen. Há mais ou menos um ano, começamos a pensar em um assunto, um tópico em que pudéssemos nos debruçar e veio a ideia de documentar o impacto da Copa e dos Jogos Olímpicos. Apesar de estar acontecendo no Brasil, há um contexto internacional envolvido nesses megaeventos. Eles já aconteceram na África do Sul, em Londres, em várias partes do mundo, então acho que tem alguma relação conosco. O projeto consiste em documentar em fotos os impactos da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos no Rio e em São Paulo, como um exemplo do que o Brasil vem atravessando. As mudanças que estão acontecendo em termos de infraestrutura no país, a construção de novos estádios, o fato de várias pessoas estarem em situação de risco e terem que sair de suas casas…Nossa ideia é registrar todo esse cenário em fotos interessantes.
A Alemanha também já sediou uma Copa do Mundo. Como vocês comparariam os impactos da Copa na Alemanha com o que vocês viram no Brasil?
Caroline – Eu não acho que na Alemanha seria possível remover e reassentar tanta gente, ou mesmo usar a Copa do Mundo como uma desculpa, o pretexto necessário para gerar tantas mudanças na infraestrutura das cidades. Não acho que isso aconteceria na Alemanha, sinceramente.
Cordula – Não aconteceu na Alemanha, em 2006, na realidade. Não me lembro de remoção alguma na Copa da Alemanha, em 2006, por exemplo.
Lilly – Não me lembro de muitos impactos negativos. Não houve tantas construções novas, a Alemanha tinha os estádios e a infraestrutura necessária, ao meu ver.
Quantas comunidades vocês visitaram?
Caroline – Nós visitamos oito comunidades em São Paulo, em toda a cidade, contando um prédio ocupado.
E é possível perceber um padrão da atuação do poder público com relação a essas comunidades que estão em risco?
Lilly – Uma coisa que nós vimos em todas as comunidades pelas quais passamos foi que o governo simplesmente não está olhando para as pessoas, está pensando somente em desenvolvimento. Não há soluções ou diálogos com a comunidade. Vimos casas que estavam sendo destruídas para que as pessoas não morassem mais lá, havia entulho, lixo espalhado por todo lado… É como se os governantes esquecessem dessas pessoas e criassem um ambiente inóspito para se viver de maneira proposital. E para isso não importa se foi a comunidade está naquele lugar há 20, 30 anos. Parece que o governo sempre está criando métodos para que o ambiente dessas comunidades seja inabitável.
Cordula – E é possível sentir a pressão a que os moradores estão submetidos. As pessoas não se sentem confortáveis nesses lugares, porque estão sendo pressionadas a sair de lá.
Caroline – Em quase todas as comunidades ouvimos as pessoas reclamando de falta de informações. Os líderes comunitários, quase todos eles, nos disseram que tentam obter respostas sobre o que vai acontecer com a comunidade, mas que o poder público sempre diz que não pode dizer porque não sabe. Penso que é uma estratégia para que eles não possam reagir à situação em que se encontram. A mobilização dessas pessoas fica muito prejudicada por essa falta de informações.
E como foi encontrar as pessoas que estão em situação de risco por conta da Copa?
Caroline – A sensação é péssima. Uma coisa é você ler um artigo, uma matéria sobre as remoções e as pessoas em risco, mas quando você vai lá e vê a expressão das pessoas, tudo muda. A gente chegou a presenciar em uma das comunidades as casas das pessoas sendo destruídas enquanto estávamos lá. O governo parece estar fazendo pressão para que as pessoas saiam de lá. Isso não faz sentido nenhum!
Lilly – Vimos também que as pessoas não estão sempre tristes. Vimos que muitas pessoas estavam com muita raiva, dava para sentir a resistência nas comunidades. Vimos muitas pessoas que querem lutar e não se contentam em apenas sentar e ficar chorando pela situação em que se encontram. A resistência existe e você pode sentir em muitas pessoas nessas comunidades.
Cordula – Ouvimos muita gente dizer que não tinha esperança, mas ainda assim elas lutariam até o final. Foi legal de ver a força dessas pessoas.
E pelo tempo que vocês estão no Brasil vocês sentiram uma atmosfera de festa com relação a Copa que não condiz com essa realidade das remoções?
Lilly – Quando fomos ao estádio do Corinthians, em Itaquera, deu para sentir. O tempo todo em que estávamos lá as pessoas iam ao estádio para tirar fotos, orgulhosas com o fato da Copa do Mundo ser ali. Mas como o nosso enfoque eram moradores em situação de risco, vimos que essas pessoas estavam muito preocupadas com a possibilidade de perder suas casas e de conviver com violações de direitos. Por exemplo, as pessoas sempre reclamavam do André Megale, que gerencia o comitê executivo da Copa [no estado de São Paulo]. Diziam que levavam questionamentos a respeito de o que ia acontecer com eles e a resposta era sempre: “Eu não sei, não posso dar informação alguma”. Isso foi o que nós vimos a maior parte do tempo.
Vocês acham que essas violações de direitos relacionadas à Copa são condizentes com a imagem do Brasil no estrangeiro?
Caroline – Depende de quem estamos falando. Por exemplo, nós fomos a um seminário na Alemanha em que as pessoas estavam discutindo essas questões de violações de direitos humanos no Brasil por conta da Copa. Não creio que haja uma “imagem do Brasil”, depende de como as pessoas veem. A mídia na Europa também é diversa. Dependendo da publicação que você ler, você vai ter uma imagem ou outra a respeito da realização da Copa do Mundo no Brasil. É uma pergunta difícil!
E de onde veio esse interesse de vocês em documentar esses processos que estão acontecendo no Brasil?
Lilly – Nós estamos interessadas em temas como mudanças urbanas e sociais. E pensamos que nesses megaeventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, há uma concentração muito forte desses processos. Vários tipos de transformações urbanas e sociais que estão acontecendo em todo mundo podem ser vistas aqui no Brasil por conta da realização desses eventos.
Cordula – É como uma intensificação de processos capitalistas, com prazos apertados, e consequências sérias para as pessoas que estão sendo afetadas por eles.
Caroline – Todos nós do grupo Shift temos interesses em tópicos como a gentrificação e mudanças urbanas, por exemplo. Por isso nós escolhemos a Copa do Mundo, por esses processos todos. E eles têm relação com a Europa, conosco. Nós não queríamos apenas ir para um país distante, mas queríamos um lugar específico para ver essas mudanças. E sabíamos dessa características da Copa do Mundo, desses fenômenos que acontecem, o modo como a FIFA usa as mesmas estratégias em todo o mundo e acaba gerando esse quadro que pode ser visto no Brasil também. Apesar de ter consequências diferentes em cada país, sempre há em comum mudanças e imposições, violações de direitos.
Qual a impressão de vocês a respeito da resistência, dos grupos que estão resistindo a essas violações todas?
Lilly – Percebemos que mobilização é fundamental. Há uma grande diferença entre as comunidades em que as pessoas se organizam para resistir e aquelas em que não fizeram isso. Em lugares onde as pessoas não estão tão conectadas, fica muito mais fácil para que as violações de toda natureza ocorram. Vimos alguns lugares, como a Favela do Buraco Quente, na Zona Sul, que o governo agiu mais violentamente do que em outros lugares. Justamente porque não havia uma base de resistência tão forte. As negociações ficam mais viáveis com o governo quando se tem organização.
Caroline – Um exemplo de resistência que achei ótimo foi o plano alternativo de urbanização da Comunidade da Paz. Os moradores se uniram para criar um plano e dizer que havia sim outra possibilidade de fazer as coisas. Achei interessante como as pessoas fizeram para se unir e propor uma outra maneira de uso daquela área como uma forma de diálogo com o governo. Não sei os detalhes desse plano, mas é sempre bom quando as pessoas começam a se comunicar e lutar por seus direitos.
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