Reformas na Sapucaí e demolição de prédio centenário do entorno do Sambódromo, no Rio, evidenciam o descaso com o patrimônio histórico frente aos interesses políticos e econômicos ligados, desta vez, aos grandes eventos esportivos.
Mauro de Bias
31/8/2012
Não é de hoje que os tratores movidos pelos interesses políticos e econômicos passam por cima (às vezes, literalmente) de monumentos de valor subjetivo, importantes para a memória de determinado grupo social. De uma hora para a outra, a antiguidade deixa de ser tesouro para se transformar em entrave ao crescimento. A bola da vez no Brasil é tudo o que estiver no caminho dos megaeventos esportivos, ou seja: Copa do Mundo e Jogos Olímpicos.
Um caso recente aconteceu em pleno Sambódromo do Rio de Janeiro, que era tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e teve a medida suspensa para permitir que fossem feitas obras de ampliação e modernização visando as Olimpíadas. A Passarela do Samba foi escolhida para abrigar as competições de tiro com arco e a chegada da maratona e, com a reforma, perdeu suas características originais. Para viabilizar as novas estruturas, foi preciso também implodir uma fábrica de história centenária que ficava ao lado da Marquês de Sapucaí: no lugar será construído um prédio empresarial.
Projetado por Oscar Niemeyer, o Sambódromo foi construído obedecendo a um projeto alternativo, pois a fábrica vizinha, pertencente à cervejaria Brahma, não permitia a execução do desenho original do arquiteto. Com a necessidade de reformas para a Olimpíada, a prefeitura decidiu finalmente executar o primeiro projeto. Em 2011, a administração pública conseguiu um acordo com a empresa para implodir a velha instalação industrial, que estava abandonada, e construir as novas arquibancadas seguindo o projeto de Niemeyer. A implosão aconteceu em 5 de junho do mesmo ano. A reforma, porém, recebeu uma advertência do Conselho Estadual de Tombamento (CET) do Inepac.- A vereadora Sonia Rabello (PV), professora de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, diz que votou a favor do destombamento do Sambódromo, mas, ao mesmo tempo, que era contra sua reforma e a demolição da fábrica. Ela explica que, diante de clara afronta do projeto às características do bem tombado, o CET (conselho do qual ela fazia parte na época), chegou a recomendar ao governador Sergio Cabral que destombasse o Sambódromo para que as obras fossem feitas. “Foi uma medida radical para salvar a ‘moral’ do instituto do tombamento”, escreveu a ex-conselheira em seu site. Por lei, o chefe do poder executivo é quem tem a última palavra sobre a decisão de preservação ou não de um bem: ele pode, assim, passar por cima de decisões de braços administrativos do governo, como institutos de proteção ao patrimônio.
- Em ritmo de samba
Mesmo que a reforma tenha vindo para executar o projeto original da Sapucaí, Sonia faz ressalvas. “Nos conselhos examina-se isso com muito cuidado. Uma coisa é você tombar um bem em função do seu projeto, como é o caso do Parque do Flamengo. Ele foi tombado antes mesmo de ser concluído por que constitui uma unidade de pensamento em relação à sua concepção. Outra coisa é tombar um bem já construído. No exemplo do Sambódromo, o que se tombou foi o bem, não o projeto original dele”. Para ampliar a crítica, a vereadora usa o Museu Nacional de Belas Artes como exemplo. O prédio, de 1908, é tombado. “Você demoliria parte do museu porque ela não foi feita de acordo com o projeto original?”, questiona. - A fábrica da Brahma, que foi derrubada junto com o antigo setor 2 do Sambódromo, era protegida por ser entorno de bem de interesse histórico (Decreto-Lei nº2, de 11 de abril de 1969. Artigo 7º, parágrafo único) e, por isso, qualquer mudança nela deveria antes ser submetida ao CET. “Embora alguns prédios não sejam tombados, eles constituem uma ambiência do bem tombado. E a ambiência é um conceito mais consistente do que o de mera visibilidade, de você enxergar ou não a construção principal”, explicou Sonia, dando o exemplo de outras construções históricas que ainda estão contextualizadas, como o Theatro Municipal, Museu de Belas Artes e a Biblioteca Nacional.Tentativas anteriores de demolição da fábrica da Brahma já haviam sido vetadas pelo CET. Desta vez, no entanto, o órgão não teve força para frear as máquinas. Em acordo com a prefeitura, a cervejaria permitiu a demolição, comprometeu-se a entregar o terreno à administração municipal e bancou a construção das novas arquibancadas, orçada em R$ 30 milhões. Procuradas, nem a prefeitura nem a Brahma informaram o que foi oferecido à empresa em troca de tais benfeitorias.
No terreno negociado com o poder público será construído um empreendimento privado. A prefeitura também não deu informações a respeito do prédio, mas sabe-se até agora que ele foi projetado por Oscar Niemeyer, terá 19 andares e será administrado pela Real Estate Company, segundo reportagem da Folha de São Paulo. Ao custo de R$ 550 milhões, a construção será feita pela Hochtief do Brasil.
- Críticas à Prefeitura
A negociação pouco transparente inspira críticas. “O prefeito Eduardo Paes tem costume de dizer que não custou nada à prefeitura, mas custou sim. Ele não pagou em dinheiro, mas pagou com recursos construtivos, aumento de gabarito. Ninguém dá nada de graça. Eu sei que foram oferecidos recursos em troca da obra, só não sei a quem nem aonde”, conclui Sonia.
Paulo Vidal, diretor do Inepac, declarou apoio à implosão da fábrica e à reforma do Sambódromo. “O prédio tinha algum valor, mas não suficiente para preservação. Tanto que não foi preservado”, defende. “Muitos edifícios contam a história da evolução da cidade, mas nem por isso precisam estar presentes. A gente vai contar a história da cidade, da evolução, e esse prédio vai continuar sendo citado, mas ele não vai mais estar ali. A fábrica da Brahma tinha conservação problemática, a função não estava mais presente, a recuperação era um entrave, não era um prédio para ser preservado. Por isso não foi”, completa. - O especialista reclamou ainda que o prédio, por estar abandonado, prejudicava visualmente o entorno da Sapucaí. “Já havia uma situação de decadência. Por falta de uso, pelo estado de deterioração que gerava para o entorno do Sambódromo. Então, não sendo um prédio de interesse para ser legado para gerações futuras, a demolição dele abriu um espaço para renovação da área, o que é desejável”, defendeu.
Quanto à reforma da Passarela do Samba, Vidal acredita que as modificações não trouxeram prejuízo - ao histórico palco do desfile das escolas. “As obras foram entendidas como benéficas para a cidade e não prejudiciais para o bem tombado. Ele é um equipamento público que cumpre uma função, a de receber o samba na sua plenitude. Portanto, aumentar sua capacidade e corrigir a forma com que ele teve que ser executado devido a uma impossibilidade na época da construção foi a melhor solução”.
Discordância
Houve, inclusive, discordância entre os órgãos de tombamento para decidir sobre a preservação do Sambódromo na época da reforma. O Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro entendeu que a reforma, mesmo alterando significativamente o bem, poderia ser feita sem necessidade de retirar a Passarela da lista de proteção, enquanto o Inepac preferiu excluir a Sapucaí de seu livro para “resguardar a moral” do instituto. O professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ Gustavo Rocha-Peixoto acredita que a divergência acontece porque definir a relevância histórica de uma construção não é uma ciência exata. “Para um bem ser protegido, ele tem que ser considerado importante sob o ponto de vista da preservação da memória e da cultura municipal, estadual ou nacional. E isso é muito vago”.O professor comenta ainda que, uma vez protegido, não é aconselhável retirar o bem do livro de tombo. “As legislações brasileiras, em geral, determinam que algo só pode ser destombado se for feita uma análise pelo conselho que o tombou e se ele chegar à conclusão de que existe uma exigência indeclinável para o desenvolvimento urbano, uma exigência mais importante do que manter a memória presente.
- É subjetivo”.
Na opinião de Rocha-Peixoto, o destombamento deve ser uma medida para ser utilizada com ponderação. “É condenável se for determinado por fatores que não sejam exatamente do interesse da cultura do país. Um interesse escuso, corrupto”, criticou. “Às vezes até acontece de um bem ser tombado de maneira errônea. E quando se descobre que na verdade ele não tinha aquele valor todo, o destombamento é aceitável”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário