Obras da arena do Corinthians empregam quatro haitianos, que veem no trabalho chance de construir uma nova vida.
Almir Leite - O Estado de S.Paulo
SÃO PAULO - Jean, Marie Yveline, Ronald e Richmond têm muito em comum. São
haitianos, vítimas, ainda que indiretas, do terremoto de janeiro de 2010 que
matou mais de 200 mil pessoas no país, vivem no Brasil como milhares de
compatriotas... E seus caminhos se cruzaram nas obras do Itaquerão.
Tiago Queiroz/Estadão
Ronald e Jean trabalham no
Itaquerão
Os quatro fazem parte de um contingente de 1.840 pessoas que erguem a arena
corintiana, palco do Mundial de 2014. Ajudam a levantar o estádio enquanto
constroem uma nova vida.
Ronald Pierre tem 32 anos e está no Brasil há dois. Fala cinco idiomas
(francês, creole, inglês, português e espanhol). Era jornalista no Haiti; virou
eletricista em São Paulo. Lamenta o que ficou para trás, mas olha para frente.
"Eu gosto muito do Brasil, me sinto bem aqui.''
Até chegar ao Itaquerão, seis meses atrás, Ronald passou por poucas e boas.
No início de 2010, levava vida tranquila em Les Cayes, cidade litorânea ao sul
de Porto Príncipe (150 quilômetros). Era apresentador de uma emissora de rádio
local havia três anos e sentia-se seguro.
Até que o terremoto na capital do país abalou sua vida. Ronald perdeu o
emprego e não demorou para perceber que, no caos que se seguiu, seria difícil
encontrar ocupação, qualquer que fosse. "Não tem como viver lá. O Haiti passa
por um momento difícil e ainda enfrenta um surto de cólera", conta ele. "Todo
mundo que tem oportunidade vai para outro país.''
Para Ronald, a oportunidade parecia ter surgido quando uma tia falou que
conhecia um homem que levava haitianos para a França. Procurou o "coiote'' e foi
informado de que teria de passar uma temporada no Equador antes de rumar para a
Europa.
Lá foi ele. Admite ter pago ao coiote, mas não revela quanto. No entanto,
haitianos têm desembolsado entre R$ 1 mil e R$ 5 mil na esperança de vir ao
Brasil.
Mas, ao chegar ao Equador... "Conheci vários haitianos que estavam lá havia
meses com a mesma promessa. Percebi que tinha sido enganado", recorda. Ronald
pensou em voltar para casa, mas acabou por acompanhar um compatriota que
tentaria entrar ilegalmente no Brasil.
O amigo lhe garantiu conhecer uma área na fronteira com o Peru em que não
havia policiais. "Passei 17 dias tentando entrar, praticamente sem dormir. Mas
em todo lugar que eu ia tinha polícia e me barravam. Até que consegui chegar a
Tabatinga (no Amazonas).''
Lá, esperou três meses pelo documento que lhe permitiu ficar. Foi para Manaus
e, 15 dias depois, decidiu tentar a sorte em São Paulo.
CONEXÃO AMAZÔNICA
Manaus também foi rota para Jean Garbin
Marcellin, de 32 anos. Mas ele chegou à cidade vindo da Venezuela. Soldador de
profissão, tentava estruturar a vida fora do Haiti desde 2007. Começou pela
vizinha República Dominicana e estava pela segunda vez na terra de Hugo Chávez,
mas a dificuldade para enviar dinheiro para a família (só podia fazer uma
remessa por mês) o empurrou para o Brasil.
Jean tem pais e oito irmãos vivos - um morreu no terremoto - e sua ajuda
passou a ser fundamental após o desastre.
Era setembro de 2011 e ele pegou um ônibus em Caracas, entrou no País por Boa
Vista (Roraima) e foi parar em Manaus. De lá, veio de avião para São Paulo. Com
a documentação regularizada, foi morar na Liberdade.
Os haitianos se concentram nesse bairro e no Glicério, ambos na região
central. Lá encontram apoio na Casa do Migrante, na Igreja Nossa Senhora da Paz
e de compatriotas "veteranos".
Depois de fazer alguns bicos, num belo dia Jean pegou o metrô e foi parar no
Itaquerão. Já sabia da construção do estádio e conhecia a Odebrecht, que fizera
parte do consórcio que tocou a obra em que trabalhou na Venezuela. "Sabia que
seria um emprego duradouro", explicou.
Fez um teste, foi aprovado e começou a trabalhar em 1.º de fevereiro de 2012.
Sempre teve boas avaliações e isso o levou, sete meses atrás, a participar de um
café da manhã em grupo com um diretor da construtora. O encontro é um bate-papo
em que funcionários falam do trabalho, mas, principalmente, da vida.
Quando chegou sua vez, Jean revelou o que lhe angustiava e entristecia: a
distância da companheira, Marie Yveline Milus. Disse que gostaria de tê-la junto
dele.
O diretor se comoveu e a empresa decidiu ajudar Yveline a imigrar. Foram seis
meses de negociações com o governo brasileiro - são emitidos cerca de 120 vistos
de permanência para haitianos por mês e a fila é grande, pois calcula-se que há
mais de cinco mil solicitações. Mas deu tudo certo e, na segunda-feira passada,
ela chegou ao Brasil (a construtora pagou a viagem).
E já tem emprego: vai trabalhar no Itaquerão. "Estou feliz, espero iniciar
uma vida de alegrias aqui no Brasil, ter um futuro melhor", balbuciou em creole
Marie Yveline - Jean serviu de intérprete. Tímida, voz baixa, mostrava estar
assustada em seus primeiros passos no "novo mundo".
A Odebrecht ainda não sabe em que função encaixará Yveline, de 26 anos. É
provável que seja como auxiliar de enfermagem, pois ela fez dois anos de curso
em Porto Príncipe.
Jean também é tímido, mas seu sorriso revelava um ar de vitória. "Minha vida
vai ficar melhor!''. Feliz, ele nem lamentava o fato de ter deixado sua terra
natal. "Lá não dá para viver. Tem o reflexo do terremoto e também muita
violência. Nos últimos anos, vivemos um clima de guerra civil. O Haiti era um
ótimo país, mas agora...''
Depois de morar um ano na Liberdade, tudo o que ele quer agora que está
acompanhado é organizar a casa que alugou no Jardim Etelvina (zona leste).
"RAÍZES''Ronald ainda mora na Liberdade, junto com um
irmão que chegou a São Paulo depois dele. Tem carinho pelo bairro, que o acolheu
no início de sua caminhada - ele ficou na Casa do Migrante.
Acolhido, Ronald foi à luta. Trabalhou na construção civil, como ajudante, em
vários lugares e decidiu fazer um curso de eletricista. Depois de cinco meses,
pegou o certificado e passou a bater ponto na portaria do Itaquerão. "Fui umas
cinco ou seis vezes e não consegui nada. Mas era aqui que queria trabalhar e
insisti.''
Seis meses atrás, conseguiu ser contratado. Está satisfeito, pois agora
consegue mandar parte dos R$ 1.472,00 que recebe por mês para a família - pais e
seis irmãos estão no Haiti. Só a saudade o incomoda. "É muito grande, mas não dá
para ir lá. Me viro com o telefone e a internet.''
A saudade ainda não pegou Richmond Noel. Há apenas dois meses no Brasil, o
pintor de 27 anos está na fase da esperança. Acaba de ser contratado e hoje será
seu primeiro dia de trabalho. "Estou começando uma nova vida. E vai dar certo",
sonha ele.
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